Sem esforço

Por Marcelo Galuppo

A modernidade, essa nossa companheira de jornada que nunca dorme e vive conectada, tem uma relação curiosa com o esforço: tudo o que ela construiu foi com muito trabalho, mas parece que tudo o que ela deseja é nunca mais ter que fazê-lo. A base do capitalismo moderno foi a exploração organizada do proletariado: com suas jornadas exaustivas, suor, disciplina e, claro, boletos, a engrenagem gira à força de músculos, massa cinzenta e relógios de ponto, mas ela também nos promete descanso e autonomia para fazermos de nossas vidas o que quisermos. Podemos, por exemplo, usar o tempo livre para transformá-las estudando para conseguir um emprego melhor, dedicando-nos a viver uma vida mais saudável ou procurando por nossa alma gêmea (coisas que, convenhamos, exigem de nós muito esforço).

Mas eis que a Atlas, a Sony, a IFood, a Uber e a Netflix decidiram que esforço é coisa do passado. Escada rolante para não precisar subir um lance de escada, controle remoto para não precisar levantar-se do sofá, carro e comida por aplicativo para não precisar ir ao supermercado e séries no streaming que já engatam um episódio no outro para, enfim, nos dispensar de termos que escolher, parece ser a bandeira da vez.

Para o trabalhador cansado que conseguir chegar vivo ao final de semana, tudo isso pode parecer uma conquista. Desconfio que seja apenas parte do plano de quatro ou cinco homens reunidos em algum lugar no sul de Manhattan, usando cartolas e casacas e olhando uns para os outros com um sorriso maroto no rosto e uma ideia indecente na cabeça. Aparentemente nos dão tempo livre. Na verdade, estão nos sedando.  O lazer, que antes era conquista de quem trabalhou duro, hoje é anestesia preventiva.

Se você perguntar a um jovem de 20 anos se ele sabe cozinhar, descobrirá que vários nem sabem se há um fogão na casa deles. Ele também não sabe mais dirigir ou escolher um programa para assistir. O capitalismo está conseguindo despreparar toda uma geração para cuidar de suas próprias vidas.

O paradoxo é trágico: quanto menos esforço fazemos, menos capazes somos de alcançar algo que valha a pena. Objetivos exigem disciplina, resistência e paciência, que não combinam com sofá reclinável e algoritmo que adivinhe o que você quer ver (e que você nem sabia que queria).

Estamos nos tornando dóceis como gatinhos domesticados: alimentados, entretidos e inofensivos. Livres de esforço, mas livres também de potência. Nietzsche, se assistisse ao desfile contemporâneo de corpos refastelados nos sofás e vontades frouxas, provavelmente soltaria um riso trágico. Para ele, a vida que merece ser vivida é aquela que se afirma contra tudo e contra todos pelo esforço, conflito e superação. O niilismo moderno (e Nietzsche é o algoz desse niilismo), que troca a dor de tornar-se o que se é pelo prazer da diversão, seria o triunfo do último homem, sem ambição, que boceja diante do abismo e se orgulha de sua segurança a metros de distância. A escada rolante, o streaming  e o “não me estresse” seriam, aos olhos dele, os símbolos de uma civilização que trocou a vontade de potência por um travesseiro ortopédico. E sem vontade, diria ele, não há grandeza — só digestão, e má.

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